Relatos de Nuno Ferreira- Portugal a pé

Portugal a Pé - Da estranheza às boas-vindas calorosas
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«Primeiro estranha-se, depois entranha-se», dizia Fernando Pessoa. A mensagem foi percebida pelo jornalista Nuno Ferreira durante a sua viagem por Portugal a Pé. Esta semana revisita memórias de dois anos a percorrer o País de mochila às costas. As histórias variam desde as desconfianças de um País interior pouco habituado a mudanças até às boas-vindas dadas, sobretudo, após divulgação do seu projecto, por meios de comunicação social.
Nuno Ferreira* | terça-feira, 3 de Agosto de 2010

Quando parti de Sagres no já longínquo mês de Fevereiro de 2008 não tinha comigo a total percepção do que um ser de mochila às costas pode representar por entre as vielas, ruelas, caminhos e estradas secundárias do país. Hoje, a percorrer a minha última província, o Minho, sei que cada aldeia, cada vila, cada estrada, cada dia pode encerrar uma surpresa. A forma como a presença é recebida depende de variáveis tão díspares quanto o clima, a taxa de desemprego, a insegurança, o isolamento ou não, a geografia e...a disposição das pessoas.

Numa tarde gélida de Fevereiro, em Lagoa, Macedo de Cavaleiros, um velho a aquecer-se junto a uma salamandra de um café lançou-me um olhar hostil, ainda eu não abrira a boca: «Você anda a vender alguma coisa? Não quero nada» Em Vila Meã, Penafiel, dirigi-me de mapa desdobrado a um cidadão para pedir uma informação. «Não quero, não quero nada», respondeu. Em mais que uma ocasião, passei por indivíduo que anda à procura de trabalho. «Andas a procurar trabalho, andas?», perguntou um homem à saída de Vila Flor, a inspeccionar oliveiras com um amigo. Mais adiante, em Junqueira, já perto de Alfândega da Fé, três homens especaram mal me viram aparecer a uns 500 metros. O mais velho meteu conversa. «Já cá tive um como tu a trabalhar comigo. Era de Lisboa, era arrumador. Era sério, trabalhador...um dia chateamo-nos por causa do futebol, vê lá. O gajo era do Benfica, eu sou do Porto...».

Na zona de Santa Comba Dão, em meados de Março de 2009, passei mais de uma vez por peregrino: «Vai para Fátima, descanse aqui um bocadinho...». Em Rio de Onor, Bragança, passei por passador de droga. Estava a subir vindo da aldeia luso-espanhola quando ouvi: «Deves levar aí muita drogazinha, deves...com o que levas aí ficas rico». Era um aldeão, de machado e serra comprida na mão. Nesse dia resolvi indignar-me e fui falar com o homem. Pediu desculpa, que tinha a mulher doente e alguém lhe tinha derrubado o muro na noite anterior e que eu não imaginava a malandragem que anda por aí. Os mais desconfiados usam quase sempre a mesma fórmula: nos tempos que correm não se pode confiar em ninguém.

Coincidência ou não, os mais desconfiados são quase sempre os mais amedrontados. Uma manhã de sol glorioso vinha a descer da Guarda pela estrada antiga que leva a Celorico da Beira. Estava a fotografar uma moradia de cores garridas com uma bandeira portuguesa quando ouvi, vindo do outro lado da estrada: «aquele não está a fazer coisa boa». Virei-me, vi dois homens e uma mulher num viveiro e venda de plantas à beira da estrada. «O quê?», perguntei. «Nada, nada, estamos aqui a falar de plantas...».

No planalto desértico de Miranda, decidi percorrer a estrada que partindo da cidade segue os caprichos da linha fronteiriça. Por momentos, desejei estar a fazer Portugal e Espanha a pé. Metia por Alcañices e dali raia acima em vez de contornar pacientemente uma fronteira que já nem faz sentido. Tinha acabado de passar São Martinho de Angueira e dirigia-me para Avelanoso. Ali o asfalto está aí a 90% por nossa conta. Desconfio que é preciso muito azar para alguém ser atropelado num local desolado como aquele.

Ia por ali a assobiar e satisfeito com as entrevistas que fizera em Constantim a um construtor de gaitas de foles e ao último alfaiate de capas de honra mirandesas quando vi parar uma viatura da GNR. Que não me assustasse, que era pura rotina, tinham recebido um telefonema, que andava por ali um estranho de mochila às costas. Para facilitar as coisas, o fabricante de gaitas que entrevistara em Constantim era colega deles, guarda em Miranda. Apontaram o nome do pai e da mãe, a morada e lá segui.

Isto quanto à desconfiança. Tenho mais histórias mas prefiro quedar-me por aqui. É muito mais bonita a hospitalidade. Os dedos das mãos não chegam para contar as vezes em que fui mais que bem recebido. Quando dois canais de televisão se interessaram pela minha viagem, então, chegou a ser embaraçante. «É ele, é», disse a dona de um restaurante em Paradela, Montalegre, alto e bom som, é ele. «Marido, anda cá ver o senhor que anda a dar a volta a Portugal a pé. Não é você? Não acreditas, não venhas...É o senhor, apareceu na televisão ao pé de um burro, não foi, com a serra por trás. Eu é que não me metia numa dessas... Depois mete as fotos na internet...é ele!» Em Cabeceiras de Basto, foi a vez de um barbeiro, vizinho da lavandaria onde fui colocar roupa a lavar. «E que tenha uma boa viagem. Volte mais vezes a Cabeceiras!»

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